Mas existe algo que não transparece na escalada de sentimentos que os livros despertam. A luta de seu autor para que o trabalho ganhe a visibilidade necessária, para tocar o primal instinto de alguma pessoa. Não basta apenas escrever, necessário uma luta que transporta escritores para uma arena onde não existe pureza de poemas entardecidos ou nuances em nuvens doces. A corrida é selvagem para quem se coloca diante do monstro das editoras. Essas feras capitalistas que muitas vezes preferem o extermínio à reciclagem. A morte precoce ao milagre da vida...
Mas existem valquírias. Mulheres que tomam para si a coragem em um mundo onde, cada vez mais, a emoção e a honestidade parecem frígidas. Munidas apenas de uma força de vontade vulcânica e de talento de sobra para disseminar idéias e bater de frente com o conformismo barato desse dia-a-dia enfadonho. Chantal Dalmass é assim. Guerreira diária contra a vontade de uma editora que queimaria seus livros. Cavalgando por entre arranha-céus, empunhando apenas letras dispostas geometricamente em folhas. Dando livros às pessoas que aceitam serem tocadas pela poesia de seus contos. Uma dádiva em forma de doação que exige calma dos passantes, pois o contrário pode dar margem a interpretações errôneas.
Ser arrebatado por esse tufão de nome Chantal é tão certo quanto o ar respirado.
O GD conversou com essa autora brasileira que luta diariamente contra o monstro editorial.
CHANTAL DALMASS: Estou distribuindo gratuitamente 3716 exemplares dos livros MENTIRAS E CONFISSÕES, de minha autoria, e A CAMA REDONDA DE MARIA BEATRIZ, de Maria Beatriz Soares, publicados em 2005 pela editora Planeta e que seriam queimados em “operação de destruição de estoque”.
Consegui salvar os livros da fogueira da editora Planeta e agora dou os exemplares nas ruas de São Paulo. Filas de cinema, nas calçadas da rua Augusta, na Barão de Limeira (em frente ao prédio do jornal Folha de São Paulo), na avenida Paulista; já distribuí pessoalmente cerca de 1600 livros.
Dou o exemplar nas mãos do leitor, os livros que seriam queimados estão sendo lidos e passados adiante, os livros estão vivos.
Dou os livros na rua simplesmente porque não consigo viver com a idéia de que uma editora queimar livros seja coisa normal.
A editora queima livros porque é o modo mais simples, rápido e barato de ganhar espaço em seus depósitos e de economizar com transporte, controles, prestação de contas (sobre vendas nulas ou insignificantes) e pagamento de direitos autorais.
Para a editora, doar os livros para bibliotecas e escolas custa dinheiro (frete, etc), vender a preços populares também custa (um funcionário da editora terá de controlar quantidades, estoques e vendas, além de prestar contas e pagar os centavos devidos ao autor).
Queimar é muito mais eficiente!
Dou os livros que salvei da fogueira por duas razões: primeiro, em protesto contra a prática bárbara e abjeta de queimar livros; em segundo lugar, para divulgar o meu trabalho, fazer circular os livros. Que sejam lidos, criticados, que sirvam para passar o tempo, que – com sorte, muita sorte – inspirem alguém.
Espero ainda que os leitores se recusem a comprar de uma editora que queima livros e que trata os autores e sua obra como lixo tóxico.
Como as pessoas recebem essa sua atitude de distribuir livros gratuitamente?
Surpresa, indiferença, risos, raiva, tem de tudo! Em geral, a primeira reação é a incredulidade. Nas ruas, as pessoas desconfiam de mim, não acreditam que é de graça, que estou dando livros novos. E se acreditam, muitos pensam – e dizem – que o livro deve ser uma porcaria, que se fosse bom eu não estaria dando em vez de vender. Ou que nada que é bom vem de graça. Estou acostumada, a reação é natural, não me ofendo e ofereço para o próximo da fila. Muitas vezes a pessoa que recusou muda de idéia e vem pedir um exemplar. Eu dou, agradecida.
É claro que as editoras visam o lucro, pois são empresas como quaisquer outras, não há nada de mal nisso.
O que é perverso é que a maioria das grandes editoras espera que o livro se venda sozinho, o que acontece no caso de autores famosos ou que têm exposição na mídia. Exemplo recente, o compositor Chico Buarque, que acaba de conquistar o seu terceiro Prêmio Jabuti. O autor é uma estrela, vendas garantidas!
Quando o autor brasileiro não é celebridade, a edição é pequena (3 a 4 mil exemplares) e o esforço de divulgação, praticamente zero. Aí, sem divulgação, o livro não vende mesmo. O livro não vende porque ninguém sabe de sua existência. O livro não vende porque não está fisicamente à venda nas prateleiras das livrarias.
O livro não vende, não vende, não vende.
E ficam os exemplares um tempo lá mofando no depósito da editora. Passados alguns anos eles queimam, e caso encerrado.
Ainda existe muita discussão sobre o advento do iPad e plataformas que comercializam livros digitais. Você acredita que a leitura dos livros físicos (papel) está com seus dias contados?
Não nego que o prazer de ter o livro nas mãos é algo sensual, gosto do cheiro do papel, do toque, de uma capa bacana. Mas acredito que há espaço para todas as formas de leitura e de publicação, não acho que os iBooks e similares ameacem os exemplares de papel.
O que me assusta, sim, e me causa náuseas é aceitar com naturalidade a queima de livros por uma editora.
Um país em que uma empresa que produz e publica livros – uma editora – queima milhares de exemplares novos é um lugar hostil, um pedaço do inferno, um fim de mundo em que coisas terríveis podem acontecer. Impunemente.
O conto tem se tornado bem popular na internet. Vários sites dedicados à literatura fornecem espaço para autores. Você acha que o conto é a forma de literatura que melhor se encaixa com o formato virtual?
Textos mais curtos – contos, crônicas, poesias – sem dúvida se adaptam bem ao formato virtual, à exibição na internet.
Palavras bonitas, rimas cheias de ritmo e música. As Letras surgiram na minha vida através da poesia; ganhei do meu pai um livro de sonetos de Guilherme de Almeida e um outro, um pocket book, de Olavo Bilac. Depois vieram Camões, Castro Alves, Manoel Bandeira. Eu e meu pai líamos juntos, eu acabava decorando os versos, foi assim.
Então descobri a ficção: Monteiro Lobato e Julio Verne. Mitologia era um assunto fascinante. Romances épicos. História. Ficção científica. Biografias. Lia de tudo. Na faculdade – cursei Direito na USP – minhas disciplinas favoritas eram Filosofia do Direito e Direito Romano, com todas aquelas questões passionais envolvendo adultérios, concubinatos e intrigas de família. Algo como o seriado de TV “ROMA” em plena sala de aula, nas Arcadas do Largo de São Francisco.
Teus contos têm uma imagem forte e visceral, deixando o leitor sentir cada sensação física do que as tuas palavras descrevem. Quando você descobriu seu estilo?
Não existe “o” momento, a gente vai escrevendo, inventando histórias. E vai mudando também, amadurecendo. Os meus primeiros textos eram mais rebuscados; hoje procuro a simplicidade.
O que te inspira? De onde vem a força criativa de Chantal?
O que me inspira? Ah, muitas coisas. Observo as pessoas, ouço casos, aumento aqui, invento ali. Ou sonho, fantasio cenas inteiras, penso nos menores detalhes: sons do ambiente, cheiros, cores, roupas, disposição dos móveis, incidentes. Fecho os olhos e crio minhas histórias como se assistisse a um filme. Faço isso na cama, tomando banho, enquanto cozinho ou treinando na academia; só escrevo realmente – no computador ou no papel – depois de ter convivido com os personagens durante dias e dias, ou seja, quando a história já se tornou realidade na minha imaginação.
Escrevo para seduzir, escrevo para provocar e agradar os meus dois amores.
Escrevo por alívio, por raiva, por vingança; às vezes escrevo para matar, gosto de matar! Sou boa com venenos, facas e cartas anônimas.
Escrevo também por tédio, pura falta do que fazer; eu passo mesmo o tempo todo inventando histórias e falando sozinha... Aí escrevo o que imaginei, o texto já sai prontinho.
As fotos do seu site aumentam ainda a sensação de imersão nesse universo criado por você. Cada conto tem uma imagem específica ou a aleatoriedade deve ser preservada?
As fotos publicadas no meu blog http://chantaldalmass.zip.net e no Facebook são auto-retratos feitos com a câmera do celular. Geralmente uso o temporizador automático, 10 segundos (risos). As fotos fazem parte de momentos íntimos, em que estou sozinha, pensando nas histórias, imaginando, fantasiando. Eu arrumo o celular, depois fecho os olhos e me deixo envolver pela sensação do personagem, fica aquele clima... Isso me inspira, mas as imagens são coisas minhas, não têm correspondência direta com os contos.
Existe uma autocobrança sua em relação ao criar?
Não, não me cobro nada.
(Também nem recebo mais nada pelo meu trabalho como ficcionista, foi preciso arrumar outras maneiras de ganhar a vida. Ah, e ignoro o Acordo Ortográfico, jurei que só escrevo idéia e vôo sem acento se me pagarem!)
Quanto a criar, faço isso o tempo todo: imaginar histórias.
E já fazia há muito tempo, antes de sequer pensar em escrever um texto, um conto, uma frase para um concurso de revista.
Vivo em um mundo de fantasia na companhia de amigos, inimigos e desconhecidos imaginários; escrever o que acontece neste lugar e com essas pessoas é uma consequência.
Como você pensa, a partir desse episódio com a editora, comercializar seu trabalho?
No momento, penso apenas em distribuir os 3716 exemplares que salvei da destruição.
Mais tarde decidirei se devo ou não procurar outra editora para a publicação dos meus trabalhos inéditos; só vou publicar se receber da editora um tratamento decente, com divulgação e distribuição apropriadas.
Do contrário, guardarei os textos e as histórias para o meu público restrito, as pessoas especiais quem têm acesso aos meus arquivos e diários privados.
Você acha que a internet, criando esse clima maior de “faça você mesmo” abriu espaço para gente talentosa ou apenas deixou muito mais gente com o espírito "wanna be" de ser aflorado?
Ah, não sei, depende da personalidade, do talento de cada um. De qualquer forma, se a internet servir para incentivar novos escritores, que seja! Esperemos grandes histórias, lindos textos! Esperemos mais e mais leitores também. Mal não faz, não é mesmo?